A Mulher Cão
(Sobre o quadro de Paula Rego)
Ela acendeu a brasa do fogão
anos e anos a fio.Esfregou o soalho
lavou a roupa e os vidros
da janela costurou bainhas
descosidas e levou toalhas a cheirar
a rosmaninho à senhora do andar
de cima.
Foi ao quintal buscar hortelã
para a canja e adormeceu ao som
das gargalhadas felizes dos meninos
hoje já todos engenheiros
com a Graça do Senhor.
Agora está atada ao côncavo
da terra por atilhos
grossos.Ladra à lua
e tudo nela
é carne e sangue.
Morde a mão
e dança a valsa
sobre o chão confuso
de algum sonho diluído lá no longe
nos botões do maestro
do coreto aos domingos e feriados.
Ela é grossa
e ladra à lua.
Sente o corpo a crepitar
e rasga o coração.
Inesperadamente
entre coágulos de sangue
fala línguas
que nunca ninguém lhe ensinou.
Está atada
à sangrenta forja
das gramáticas lunares e procura
uma palavra
um nome mesmo que obscuro
e difícil de entender.
É uma mulher grossa
e no côncavo do corpo
fala línguas
sem sentido.
Deixou secar os coentros
a salsa e a hortelã.
Chama-se cão e ladra à lua.
Vive atada
às chamas que a consomem.
José Fanha, in “Marinheiro de outras luas”
de Fatyly às 22:23
8 Comments:
É uma Lobisomem.
Na verdade, gostei da dualidade presente. É uma excelente homenagem à Mulher.
Kiss, Kiss.
Fatyly, só agora vi o teu comentário pois tenho estado ausente.
Há uma coisa que tens de saber sobre o Saramago. Ele está em Espanha mas paga os Impostos em Portugal, apesar de já ter sofrido pressões para mudar para lá a sua residência fiscal. Está lá porque a sua esposa é espanhola, mas isso não lhe retira dose de patriotismo
(e dai, nem sei! Sempre fui contra uniões com os batedores de castanhola!)
Esta coisa de viver no estrangeiro tem muito que se lhe diga; Por exemplo, o teu "amigo" Soares (He, he, esta foi mazinha) foi fotografado a pisar a bandeira portuguesa nos anos 70 em França (salvo erro) e como prémio, foi eleito Primeiro-Ministro e posteriormente Presidente, tendo sido carregado às costas como um herói nacional.
Eu nem sei sei que te diga. Estou tão farto do meu país que só ainda não pisei a bandeira nacional porque receio que alguém descubra e me queira levar para a Politica :-)
Um grande abraço, amiga! :-)))
Francis
sempre gostei muito deste poema e subscrevo as tuas palavras.
Sim e fiquei a saber disso quando saramago deu uma longa entrevista num dos canais que não me recordo qual deles. Mas é fácil falar sem estar no terreno, patriotismo sim, talvez, não sei:))) mas o modo arrogante de dizer as coisas numa visualização "poltronada" olha meu lindo até eu seria uma grande Lady. Falo de Angola com saudades, do descalabro que está, mas dar conselhos aos que lá habitam, que sofrem...vão anos luz porque quem está fora, racha lenha:)))
Aiiiiiiii meu amigo????? tu és tramado e ouvi falar que sim mas em 70 andava eu mais entretida a fugir de uma eventual bala, na caça de uma eventual comidinha.
Tem calma e não pises a bandeira nacional que não tem culpa nenhuma e vamos sorrir porque depois da tempestade vem sempre a bonança.
Obrigado pelo teu comentário e um grande, mas grande abraço, amigo
:)-)))
Excelente poema para um quadro de uma grande artista:)
Beijocas*
Há quanto tempo não "ouvia" o Fanha!
Obrigado, amiga!
Ó Francis, essa do Soares a pisar a bandeira, foi uma história que nos tempos do Marcelo Caetano foi posta a circular,aquando de uma visita deste a Inglaterra, em que houve uma manifestação contra a ditadura portuguesa, em que o MS participu. Essa "notícia" aparece como reacção desesperada de um regime que via o chão a fugir-lhe.
Devo dizer-te que não aprecio politicamente o Marocas mas, enfim, não devemos embarcar em qualquer história que nos contem.
Aliás, pergunto-te se já viste alguma vez a tal fotografia?
É que já vi gente a dizer que foi em Inglaterra (versão inicial) ou em França ou em Espanha...
Mas, se me conseguires mostrar a tal foto, retiro tudo o que disse!
às vezes esqueço alguns....Como gosto do Fanha e como me tenho esquecido dele.
Ainda bem que que me relembraste.
Liga muito bem com a Paula Rego.
Lindo!!
Wind, peciscas e marta
e ouvi-lo recitar e falar de poesia como há tempos por duas vezes o fui ver em São Domingos de Rana? Sensacional!
Paula Rego é de facto uma grande artista, mas há quadros que me impressionam muito já que os olhares de sofrimento são tão expressivos que parecem que saltam da tela. Tal como este...pura realidade!
Beijos
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