quinta-feira, julho 05, 2007

21 de Junho de António Lobo Antunes












Almoço com a minha filha mais velha, pelos seus anos, num dos restaurantezinhos próximos do sítio onde escrevo. De vez em quando o telemóvel dela toca e parabéns, parabéns, aqueles que não consigo dar-lhe porque no dia do nascimento estava a dez mil quilómetros de distância. Não perdoo quase nada à Ditadura e o que menos lhe perdoo foi não ter assistido à gravidez da mãe e não estar presente quando chegou. Soube da sua vinda ao chamarem-me à barraca da rádio, por uma mensagem de Luanda, no dia seguinte, e apenas uma ou duas semanas depois chegaram fotografias pouco nítidas, enovoadas pelas minhas lágrimas de emoção e raiva. Uma filha fantasma em que não podia tocar, não podia ter ao colo, não podia beijar. Lembro-me de ter ido para junto do arame farpado, sozinho, num sofrimento imenso, e diante de mim, o rio, a mata, a infinita paisagem da minha dor. Conheci-a com quatro meses, deitada no berço a dormir, inclinei-me para ela e continuo, ainda hoje, a sentir o seu cheiro, a ver as suas mãos, o seu corpo, o seu cabelo loiro, os pezinhos que me cabiam inteiros na boca. Conheci-a com quatro meses, exausto da guerra, e dali a pouco fui-me embora outra vez. Cada 21 de Junho, ao olhá-la, vem-me à cabeça, como num vómito instântaneo, o que acabo de escrever. Fico muito quieto à frente dela no restaurante, tenha a idade que tiver, com os seus pés na minha boca e o seu cheiro a embuchar-me. Quis tanto que viesse: pensava - Vou morrer aqui - pensava - Se tiver um filho ainda que morra não morro - e desde então é a certeza da minha imortalidade e da minha permanência. Mesmo hoje, passadas mil luas, dou por mim não com ela, no Chiúme (o sítio miserável onde então apodrecia) a pensar
- Tenho uma filha, tenho uma filha e não tinha fosse o que fosse a não ser as letras do rádio e fotografias a preto e branco num quarto de maternidade, que não parava de olhar na esperança que o bebé começasse a mexer-se, a sorrir, a existir de facto, a acordar ao meu colo. Toda a guerra é horrível: os mortos, os feridos, o isolamento, a estupidez cruel, as nossas existências precárias e indignadas. Mas, maior que isso, o nascimento da minha filha foi o que mais me custou pela violência dos sentimentos contraditórios que acendeu em mim, pela dúvida – Será verdade, não será verdade? E pela minha furiosa, quase assassina indignação. A minha mãe nasceu quando o pai dela na guerra também, em França, de onde voltou (tenho o seu diário) gaseado e desfeito. Porém uma coisa era saber isto e outra coisa vivê-lo. Se Deus me fizesse o favor de voltar com os ponteiros para trás, agradecia: nada se pode comparar, julgo eu, a estar presente na altura em que uma criança nossa (em que uma criança minha) rompe no mundo. Por isso o dia 21 de Junho (21 de Junho, São Luis Gonzaga, Confessor) é uma data estranha que nunca se pacifica cá dentro. Volto a África (não é a sensação de voltar a África, é de não ter saído de lá) estou em África e um soldado vem chamar-me à barraca da rádio. O cripto entrega-me um papel – Rapariga – e eu de papel em riste, aparvalhado, incrédulo, com o coração num pingo. Como esta expressão é verdadeira: o coração num pingo. Não é uma imagem nem uma metáfora: o coração num pingo. De forma que na semana passada, no restaurantezinho perto do sítio onde escrevo, o coração num pingo. Não posso meter os seus pés na minha boca (cresceram imenso) e a minha dificuldade em exprimir ternura impede-me de a abraçar como desejaria. Para ali fico, aparvalhado: parece uma mulher e mentira: é o bebé que me roubaram, é a alegria que recusaram dar-me. É o meu bebé e o meu bebé come de faca e garfo, atende o telemóvel, cresceu inacreditavelmente depressa para a ter no colo. Comemos cerejas do mesmo prato, falamos disto e daquilo e nenhum de nós fala coisa que se veja. O facto de comermos cerejas do mesmo prato comove-me. De vez em quando os nossos dedos roçam-se, apetece-me apertar-lhos e não os aperto: estou de papel em riste a ler – Rapariga - a ler - Rapariga – diante do silêncio dos soldados, do silêncio da mata, do silêncio de Angola. Sou um pingo farpado, uma gotinha que vibra. Sou um alfereszito de vinte e tal anos a tremer contra o arame farpado. Um camarada meu aproximou-se: o Eleutério. Gostava, gosto do Eleutério. Regressava sempre da mata num molho de brócolos, com o pelotão atrás. O Eleutério chegou ao meu lado e ficou ao meu lado. Nenhum de nós disse nada. E, apesar disso, que conversa comprida, cheia de fúria e alma em tiras, naquele silêncio. Agradeço-te, Eleutério, o que trocámos sem palavras. O capitão para mim: - Parabéns, parabéns - e compreendi nesse momento que a resposta possível a – Parabéns, parabéns
era a cabeça voltada para o outro lado e a exclamação
- Caralho
tão baixinho que o mundo inteiro ouviu!


CRÓNICA de António Lobo Antunes
In Visão nº. 748 de 5 de Julho de 2007

12 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Nem sabes o que te agradeço teres colocado aqui este post.

Olha as lágrimas caêm-me pela cara abaixo.
O que gosto das crónicas de António Lobo Antunes.

Esta de uma humanidade, de uma ternura, de uma incapacidade, de uma violência tão violenta como a da guerra.


beijinhos

5/7/07 18:16  
Blogger Fatyly said...

marta
e nem imaginas como a "ferida se abriu", como chorei copiosamente visualizando cenários que me são tão familiares. Pobres soldados.
Nunca uma crónica dele me tocou tanto!!!!
Obrigado e beijocas

5/7/07 18:28  
Blogger mfc said...

Tocante...muito tocante mesmo!

6/7/07 00:35  
Anonymous Anónimo said...

É engraçado como essa memória de Angola, que persiste em tanta gente, não é aquela que preenche as minhas recordações.
Tenho pena desses anos de guerras e mortes, mas fico feliz por ter cheiros e cores que nunca mais vou esquecer.
Quanto à crónica é de uma intensidade que não deixa ninguém indiferente
Carla

6/7/07 10:04  
Blogger wind said...

Forte mas muito bom!
beijocas

6/7/07 15:21  
Anonymous Anónimo said...

Se não te importas que te pergunte, Carla, em que zona de Angola vivias e com que idade saíste de lá.

Eu nunca estive em África, mas as memórias que tenho da guerra a que nunca assisti, são bem fortes.


Beijinhos

6/7/07 18:17  
Blogger Fatyly said...

mfc
é tocante demais, sobretudo quem presenciou ao vivo.

Carla
alé dos horrores, jamais esqueço as cores, os cheiros da mata, o tamborilar da chuva nos telhados se zinco, o cheiro da terra molhada...porque foi lá que nasci e saí com 26 anos anos, idade suficiente para jamais esquecer o bel e o horror. Faço-te a mesma pergunta que a marta te fez:))) e felizmente para ti!

Wind
Bem ao estilo de Lobo Antunes:)

Beijocas e obrigado a todos

6/7/07 21:11  
Anonymous Anónimo said...

Pensei que estivesses a escrever na primeira pessoa

"parabéns, aqueles que não consigo dar-lhe porque no dia do nascimento estava a dez mil quilómetros de distância"

Estava a 10.000 Km quando a filha nasceu?

Vou começar a ler outra vez...

7/7/07 00:20  
Blogger Fatyly said...

migvic
sim ele estava a cumprir o serviço militar em Angola.
Beijocas

7/7/07 08:55  
Anonymous Anónimo said...

Quando li esta crónica, Mãezona, pensei que adoraria lê-la num outro "espaço".
"-Vou esperar"- disse para mim.
Não me enganei, meu doce!
Só podia ser mesmo aqui, no teu espaço que consegue ter cheiro, sabor e uma ternura que não acaba mais!
Maldita guerra, maldita!
Como eu adoro as crónicas do Lobo Antunes!

Beijos e um Abraço apertado.

7/7/07 11:54  
Anonymous Anónimo said...

gosto imenso das crónicas dele.

8/7/07 18:56  
Anonymous Anónimo said...

Saí de lá com 9 anos. Vivia a norte (perto de Salazar) e ainda hoje guardo as melhores recordações que alguém pode guardar da infância. A liberdade que sentia (não só em termos de espaço), a força da amizade e da convivência eram tão fortes que nada poderá apagar isso.
Chegar a Portugal foi um choque muito grande, principalmente em termos de relações humanas.
Mas o que lá vai lá vai, bola para a frente e toca a viver!
Carla

9/7/07 10:53  

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